Faetusa Tirzah
Proposta de vestimenta para jornada em reinos íntimos, 2008 a 2015
Encontro 1: Permanecemos 2 horas no quarto. A participação dx convidadx é livre. Em silêncio, registro o encontro em vídeo para a criação de uma vestimenta
Encontro 2: Permanecemos 1 hora no quarto para a experimentação da vestimenta. Em silêncio, registro a experiência
Instalação: Video, cama e vestimentas
Vídeo-instalação, 2015
Local: Museu da Gravura Cidade de Curitiba, Solar do Barão, Curitiba-PR
Proposta de vestimenta para jornada em reinos íntimos é uma investigação artística em que roupas são criadas a partir de encontros com pessoas em seus quartos.
A ideia surgiu da minha experiência como estilista e figurinista. Há dez anos me interesso pelas diversas relações entre as pessoas e as roupas: proteção, estética, identidade, movimento do corpo. Nesse contexto, identifiquei as vestimentas como materialidades potentes na arte contemporânea.
O desejo de investigar hipóteses e possibilidades poéticas me levou a desenvolver uma estratégia/proposição para criação de vestes que interagissem com territórios existenciais singulares, e escapassem, a priori, de expectativas sócio-culturais.
A princípio convidei pessoas com quem eu dialogava mais aprofundadamente sobre o assunto, incluindo as costureiras com as quais eu trabalhava. Nem todos os convidados aceitaram o risco da exposição pública de seus ambientes particulares, de seus corpos, de sua intimidade a partir da mediação do outro. O risco foi uma das questões fundamentais do trabalho - o risco do encontro, da confiança, da abertura; o risco de um projeto colaborativo realizado com a participação coletiva, onde os sentidos fossem ampliados e potencializados em circuito, na medida das conexões entre as experiências individuais.
Os encontros nos quartos, entre objetos, memórias e falas, instauraram situações extraordinárias nesses lugares tão cotidianos. Deslocamentos e catálises por vezes foram provocados culminando na presentificação do ato performático e numa outra relação com a alteridade. Eu, visível, invisível, ativa e receptiva, me comuniquei silenciosamente.
Já a vestimenta configurou-se como algo enigmático, pois estas remetem a diversas camadas de significados - uma veste seduz, define, situa, é matéria que envolve, pele, abrigo, protagonista de histórias, evoca o corpo em sua ausência. Uma roupa pode convocar seres-imagens habitantes de paisagens interiores, como quando um palhaço é chamado por seu nariz ou um xamã por sua máscara. Esta abordagem permite inserir a proposta num campo onde processos de afetividade e a emergência de conteúdos latentes são deflagrados pela experimentação em arte.
27 de maio de 2014
Foi uma surpresa. Algo que nunca fiz. Sozinho em meu quarto, com outra pessoa me observando. Sim, é como se eu estivesse sozinho. Sozinho compartilhando a mim mesmo, me experimentando. Naquele espaço. Eu sabia que a Faetusa estava ali, mas havia um acordo não dito de que ela não estava. Ela não me pedia nada, não me cobrava nada, apenas me observava com sua atenção. E filmava. Estar ali, uma hora ou mais, sendo filmado, óbvio que não era natural, mas era real. Uma extração delicada, tirando algo de dentro de mim. Eu queria dar algo, mas não queria premeditar algo, queria que surgisse. O estar basta? O fazer basta? O que a Faetusa estava captando? Estávamos juntos, mas eu estava sozinho, compartilhávamos uma solidão latente, cheia de presença. Naquele espaço tão silencioso, sonífero, de recolhimento. Eu devia mostrar algo ou a câmera já me revelaria? O que mostra quem somos? Talvez seja impossível mostrar o que somos. E por que mostrar? Ou algo sempre se mostra, mesmo sem nossa intenção?
A roupa. Outra surpresa. Não era uma roupa. Era um enigma. Pedindo uma fusão, uma entrega misteriosa. O(s) formato(s). Um retângulo comprido, verde forte. Uma outra camada, como meia calça, cor de pele, tecido esquisito, outra textura. Não combina. Uma fenda deslocada, vaginoide. Essa roupa não era uma roupa. Antiorgânica. Antiforma. Antiteórica. Era uma incompletude, pedindo que eu desse algo, que eu a completasse, que eu desse sentido a ela (ou o contrário?). Ela pedia de mim algo, propunha uma descoberta (uma jornada ao meu reino íntimo? - de ideias pré-concebidas, imagens pré-construídas, minha identidade, como me mostro ao mundo, como troco com o mundo, como me ajusto ao que tenho diante de mim, como me permito moldar, como reajo). E era como se eu e essa roupa fôssemos ligados, pois foi feita pra mim, uma estranha simbiose, cada um buscando o preenchimento um no outro. Faríamos amor? Nenhum mais importante que o outro, mas dependentes, coligados. A roupa era um ser. Mudo e que falava coisas, moldável à minha exploração, levando-me a alguns abismos, contornos, sensações, limites, repetições, descobertas. Lírica, barroca, bizarra, cafona, deslocada, estranha, sensual, ritual, vazia. O corpo vai testando encaixes, o corpo quer se enfiar nos buracos, vãos. Os buracos são para ser penetrados? Os buracos atraem o corpo. Vestir-se é esconder-se ou revelar-se? Cobrir-se ou desnudar-se? Por que cubro ou mostro? Com que intenção? Uma roupa que te leva a outro estado de consciência, de presença, de ação. Te constrói e desconstrói. Uma roupa que muda sua ação, sua percepção, que te desloca, te dá outra subjetividade ou desperta sua subjetividade. Uma roupa-interação. Não utilitária, antiestética, não informacional. Relacional. Ruptura de padrões. Antissimbólica. Roupa-mundo. Roupa-espelho. Você veste e já é outro, algo se desloca em você, algo se projeta pra fora, se tensiona, é colocado em questão. Até despi-la da pele, retornando aos contornos conhecidos, às formas estáveis, à minha identidade construída e reconhecida. Ao meu quarto, tão cotidiano que é invisível a mim.
Maikon Kempinski